quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As ondas do cérebro comandam o corpo

Um dos grandes desenvolvimentos possíveis das neurotecnologias é a criação de interfaces entre o cérebro e a mente. Na teoria, isso quer dizer que, se conseguirmos registrar em um computador alguma representação da atividade neuronal relacionada a uma função específica, teoricamente seria possível utilizar essa representação para realizar a mesma função sob comando do computador. Essa possibilidade abre alternativas terapêuticas enormes para o tratamento de pacientes com deficiências neurológicas, principalmente aqueles que não podem se comunicar ou se locomover.
Recentemente, os cinemas apresentaram o filme O escafandro e a borboleta, inspirado no livro homônimo do jornalista francês Jean-Dominique Bauby, que já mencionei nesta coluna. O jornalista sofreu um acidente vascular encefálico (um “derrame”, como é popularmente conhecido) que desconectou as regiões mais baixas do seu cérebro daquelas regiões superiores que realizam o controle dos movimentos. Ele ficou, então, completamente paralisado de uma hora para a outra, portador do que os médicos chamam de síndrome de encarceramento: incapaz de mover um músculo, comunicação interpessoal zero, embora se mantivesse absolutamente lúcido. Com muita tenacidade e sofrimento, comunicava-se por meio de piscadelas de um dos olhos – o único movimento que havia subsistido – com uma enfermeira a quem “ditou”, letra a letra, o seu livro, depois transformado em filme. Bauby e os pacientes tetraplégicos em geral seriam candidatos a utilizar as neuropróteses baseadas em interfaces cérebro-mente, se elas estivessem já ao alcance de uso. Assim, utilizariam seu próprio pensamento, intacto, para comunicar-se e para mover-se. As interfaces cérebro-mente O problema é que o registro da atividade neuronal nem sempre é simples. Uma primeira possibilidade – a mais invasiva – consiste em abrir o crânio do paciente por meio de uma neurocirurgia e implantar chips com microeletrodos em regiões estratégicas do cérebro para captar a atividade neuronal de centenas ou milhares de células nervosas, durante o desempenho de alguma função. Tal estratégia tem sido explorada em macacos com crescente sucesso, e mostra-se capaz de comandar braços robóticos que realizam movimentos até bastante sofisticados, como os atos de pegar um pedaço de alimento e levá-lo à boca. Os pesquisadores, nesse caso, compilam a atividade de centenas de neurônios envolvidos com os comandos para contrair com a combinação certa, a força adequada e a direção correta, as engrenagens do braço robótico como se fossem os músculos do braço real (paralisado ou ausente). Essa alternativa é complicada e arriscada para uso em humanos, porque seria preciso realizar uma neurocirurgia para o implante dos microeletrodos. Nem sempre isso é possível, e haveria muitas complicações que poderiam advir da tentativa. Outra possibilidade seria utilizar as ondas do eletroencefalograma (EEG), que pode ser captado através do crânio, sem expor fisicamente o cérebro. O EEG é uma medida da atividade neuronal do cérebro, descoberto nos anos 1930 por um médico alemão chamado Hans Berger (1873-1941), que não sabia do que se tratava exatamente, na época. A técnica apresenta ondas de ritmos diversos, alguns mais rápidos, outros mais lentos, que podem ser relacionadas a determinadas funções ou estados cerebrais. As ondas do EEG durante o sono com sonhos, por exemplo, são diferentes daquelas produzidas durante o sono sem sonhos: isso significa que o EEG acusa quando estamos sonhando. Da mesma forma, a técnica acusa quando realizamos um movimento, pois o traçado suave e relativamente lento se transforma em um ritmo agitado relacionado às contrações musculares. Se o registro for feito bem no topo do crânio, captaremos especificamente a atividade da região do córtex cerebral que move o pé de uma pessoa.
Esse indivíduo poderia ser um paciente tetraplégico, solicitado a imaginar os movimentos de seus pés paralisados. Nesse caso, a atividade cerebral captada pelo EEG (bastaria para isso uma touca com eletrodos de registro) refletiria os comandos cerebrais necessários para mover os pés. Levada a um computador para digitalização, quem sabe fosse possível conduzir a cadeira de rodas do paciente sem a necessidade de uma terceira pessoa, utilizando apenas o pensamento do paciente. Ambiente de realidade virtual Essa alternativa foi utilizada por um grupo de pesquisadores austríacos e alemães chefiados por Gert Pfurtscheller e Gernot Müller-Putz, do Laboratório de Interfaces Cérebro-Mente da Universidade Tecnológica de Graz, na Áustria. Essa equipe estudou o desempenho de um rapaz tetraplégico de 38 anos, portador de uma lesão medular completa na altura do pescoço e incapaz de mover-se sem uma cadeira de rodas. Após um período de treinamento intensivo, o rapaz aprendia imaginar movimentos de seus pés dentro de um ambiente virtual (uma rua fictícia) em que havia lojas, bares à beira das duas calçadas e pessoas (avatares, como se usa no jargão da realidade virtual). Ele aprendia a imaginar-se andando até o final da rua. Ao se aproximar de um dos avatares, devia parar de pensar nos movimentos dos pés para comunicar-se com eles, que lhe dirigiam a palavra dizendo “Oi” ou “Meu nome é Maggie”. E continuar o caminho imaginário até o fim da rua virtual. O treinamento possibilitava que ele imaginasse seus movimentos a partir de seus pés, e essa ação mental imaginativa ativava justamente a região do cérebro no topo do crânio, onde se encontram os neurônios que comandam os pés. Essa ativação mental específica aparecia no traçado do EEG, devidamente filtrado e processado de modo apropriado. Na situação virtual, portanto, bastava pensar no movimento dos pés e o computador movia o cenário como se o rapaz estivesse se deslocando na cadeira de rodas. Uma esfera de comunicação invisível em torno de cada avatar, representada na figura, devia fazê-lo parar de pensar no movimento, o que interrompia automaticamente o deslocamento da cadeira de rodas.
Os resultados são preliminares porque envolveram somente uma situação virtual muito simples e apenas um paciente. No entanto, foram interessantes porque mostraram a possibilidade de utilizar como interface entre o cérebro e a mente um simples registro eletroencefalográfico que pode ser obtido por meio de uma touca com múltiplos eletrodos. Os pesquisadores austríacos se preparam para aumentar a complexidade da situação virtual, mudando a direção do movimento imaginário do paciente, criando obstáculos inesperados (uma bola arremessada por crianças, por exemplo) e utilizando não apenas uma rua, mas várias vias de uma cidade virtual. Além disso, o objetivo será transferir a situação virtual para um ambiente real e experimentar o sistema em vários pacientes. Também será preciso levar em conta algumas das observações do paciente. Por exemplo, ele se queixou de que, para parar a cadeira de rodas, era preciso deixar de imaginar o movimento dos pés, algo difícil de evitar se um simples pensamento divagante surgisse na mente a qualquer momento.

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